Locomotiva Fell subindo a Serra do Mar. Subida difícil e demorada...
Essa estrada de ferro, a meu ver, é um dos melhores exemplos
dessa série sobre ferrovias cujos gabaritos modestos podem servir de inspiração
para modelistas que dispõem de pouco espaço para suas maquetes ferroviárias. Tomei
conhecimento dela a partir das crônicas apresentadas por Délio Araújo a
respeito dessa ferrovia, cuja transcrição, em quatro partes, pode ser
visualizada no site VFCO – Brasília: http://vfco.brazilia.jor.br/ferrovias/EFL/Leopoldina.Serra.Locomotivas.Garrat.1.shtml
Uma Garratt passando pelo centro de Nova Friburgo...
Fundada em 1873, a Estrada de Ferro do Cantagallo fora uma
das mais antigas ferrovias do país. No Rio de Janeiro, apenas a E. F. Mauá, a
E. F. D. Pedro II e a União Valenciana eram mais antigas que ela. Fora também a segunda ferrovia
construída em bitola estreita no país, no caso 1,10m, padrão da Valenciana e acompanhado por
outras ferrovias até convencionarem o uso da bitola de 1 metro (então todas as ferrovias de 1,10m foram convertidas para o novo padrão, inclusive a E. F. do Cantagallo).
Uma das locomotivas para sistema Fell da companhia.
O objetivo dessa ferrovia era escoar o café produzido no
entorno do Paraíba do Sul através da Serra do Mar, vindo da cidade de Portela,
onde havia conexão fluvial, atravessando a região serrana fluminense até Nova
Friburgo, e a partir de então descer a Serra do Mar até seu final em Porto das
Caixas, que na época era uma posição estratégica de conexão com a capital do
Rio de Janeiro, através da Baía de Guanabara. Posteriormente se estendeu até a
as cidades de Macuco, grande produtora de leite, e Carmo, onde se conectaria
com a Leopoldina, que adquiriu a E. F. do Cantagallo em 1911, tornando a
primeira conexão dessa ferrovia com o estado do Rio.
Do ponto de vista técnico, essa curiosa e não muito
conhecida ferrovia apresenta diversas curiosidades em relação à sua construção.
Foi a primeira ferrovia de montanha do Brasil, e contava com um estranho
mecanismo de cremalheira denominado Fell, herdado da ferrovia alpina Mont Cenis
Pass Railway, que fechara dois anos antes. O sistema Fell se diferencia do
sistema de cremalheira comum, pois o terceiro trilho não é dentado, mas sim uma
barra lisa que é “abraçada” por um conjunto de pares de rodas horizontais
presentes debaixo das locomotivas especiais para esse sistema. A vantagem desse
tipo de cremalheira em relação aos outros era que na época constava como o
único em que as locomotivas especiais para esse trecho podiam trafegar em
trilhos comuns, evitando maiores manobras e economizando com pátios e trilhos a
mais. Apenas essas duas ferrovias, outra na Nova Zelândia e outra na Ilha de
Man, no Reino Unido, utilizaram desse sistema, e atualmente apenas essa última
ainda está aberta, como linha turística.
Trecho de Cremalheira Fell, entre Boca do Mato e Teodoro de Oliveira.
O complexo e engenhoso sistema Fell. Posteriormente os trens passaram a usar o terceiro trilho apenas para auxiliar na frenagem, passando a se chamar "Fell modificado".
Além disso, próximo ao Porto das Caixas, se localiza o
primeiro túnel ferroviário do país, embora hoje em dia esteja esquecido e
parcialmente soterrado. Uma vez acima da serra, após o trecho de cremalheira,
as condições da via não melhoravam muito. As rampas eram fortes e os raios de
curva da ferrovia eram de incríveis 30m! O modelista que estiver por dentro das
escalas de raios de curvas de ferromodelos 1:87 constará que equivale às curvas
mais apertadas disponíveis no mercado, as de 360mm, aquelas tão famigeradas
entre os mais “realistas”, que geralmente estes aconselham aos iniciantes a
esquecê-las por serem “curvas para trenzinhos de brinquedo”. Bem, esse tipo de
gabarito era realidade para a E. F. do Cantagallo. Zigue-zagues também eram
recorrentes na ferrovia, que chegava a passar várias vezes pelo mesmo lado de
certas montanhas, principalmente na linha próxima à cidade de Sumidouro.
O material rodante para enfrentar esse tipo de ferrovia era
composto por máquinas modestas, pequenas locomotivas com apenas 4 ou 6 rodas,
todas motrizes. Esse tipo de máquina geralmente é utilizado apenas para
manobra, mas nesse caso elas eram as únicas capazes de percorrer todo o trecho.
Posteriormente ferrovia adquiriu algumas locomotivas da classe Mogul, que apresentam rodagem 2-6-0, ou
seja: duas rodas-guia e seis motrizes, sem as rodas de apoio, denominadas
portantes. Posteriormente a Leopoldina experimentou vários modelos diferentes
de locomotivas para melhorar o transporte no trecho, o que culminou na
aquisição de quatro pequenas locomotivas Garratt,
que se tornaram famosas na serra, por serem as mais fortes e ágeis, embora a
velocidade dos trens nessa estrada de ferro não ultrapassasse 30 Km/h.
Uma típica locomotiva classe Mogul da Leopoldina.
Uma das 4 Garratts adquiridas pela Leopoldina para o trecho.
Parte por causa do traçado extremamente obsoleto, parte por
conta da administração deficiente da Leopoldina, a E. F. do Cantagalo acabou
por ser suprimida inteiramente nos anos 60, e os trens vindos de Minas Gerais
passaram a utilizar as linhas Recreio – Campos dos Goytacazes ou a Auxiliar,
entre Paraíba do Sul e Japeri. Até o fim de sua existência, boa parte dos
trechos da E. F. do Cantagallo, por falta de manutenção eficiente, ainda
apresentava trilhos assentados no período de sua criação, quase cem anos antes!
Hoje em dia, o tráfego rodoviário substitui de forma mais eficiente do que a
velha linha de trem, que foi totalmente erradicada, mas ainda resistem antigas
construções, perdidas no mato e nas cidades, como testemunhas históricas dos
primeiros passos do desenvolvimento dos transportes no Brasil.
Ruínas de uma ponte seca próxima à Sumidouro. Fazia parte de um trecho de inúmeros "S" superpostos que ziguezagueavam as encostas das montanhas nessa parte da serra.
(créditos da foto: Gilmar Marques)
Garratt disputando espaço com os carros no centro de Nova Friburgo.
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